Educação Física, Jornalismo, e um Astronauta Russo em Praia Grande — Parte 2

Bruno Guma
5 min readJul 23, 2021
Tina e João

Para meu tio, o que o levou a faculdade de jornalismo foi primeiro seu pai, que tinha um conhecimento universal e uma compreensão de mundo que ninguém por perto tinha. Ele sabia argumentar, discutir, conhecia a política, questionava o poder. Voltava da Cosipa com um jornal amassado debaixo do braço. “Isso é uma universidade”, ele dizia se referindo aos colunistas e cronistas. Com isso meu tio foi pegando o gosto pelos jornais. Depois, apareceu uma máquina de escrever portátil, uma Olivetti Dora vermelha e meu tio passou a datilografar poesias, reflexões, artigos, “tudo muito tosco, sem profundidade, mas com algum talento para o encadeamento de ideias”. Mas ele não se via como jornalista, o sonho do meu avô era que ele fosse engenheiro ou advogado. Quando chegou a hora da faculdade meu tio se inscreveu em dois vestibulares, Fuvest para Engenharia e Unesp para Farmácia. Passou com facilidade na primeira fase da Fuvest. “Mas fui acometido por uma paixão avassaladora e mal resolvida semanas antes da segunda fase, e cheguei nos dias de prova bem desorientado. Bombei.” O baque serviu para pensar seriamente no que queria, e as matérias que mais interessavam eram de humanas. “Quase fui para Letras, mas eu gostava cada vez mais da política, já frequentava reuniões do PT na Praia Grande, ouvia Geraldo Vandré e Chico Buarque, lia García Marquez e queria fazer algo que pudesse interferir na realidade, aquele lance romântico de “mudar o mundo” que às vezes movimenta a juventude. O Jornalismo acabou sendo o caminho natural.”

Meu tio talvez seja o único leitor de verdade da família, ele me diz que começou a ler por influência do pai, meu avô João. Os livros que mais marcaram ele foram: A Metamorfose do Kafka, Cem Anos de Solidão do García Marquez, O Estrangeiro do Camus, Angústia do Graciliano Ramos, e de não-ficção História da Riqueza do Homem de Leo Huberman. Quando era criança começou a ler os gibis da Turma da Mônica, e revistas Recreio, passou para Homem-Aranha e Hulk, depois vieram Cripta e Mad. Continuou a ler gibis até os 30 anos, segundo ele, teve um editor que atribuía o fato de escrever bem pelo hábito de ler gibis.

Pergunto para minha mãe como era viver na ditadura. Ela diz que não sabia que era ditadura, “quando você cresce em um sistema não tem muita noção, era normal”, só veio saber dos horrores mais tarde. Ela lembra que meu avô era de esquerda, que era revoltado. Participava dos movimentos mas tinha medo. Descubro que minha mãe e meu tio quase se chamaram Iuri e Valentina, em homenagem ao astronauta russo Iuri Gagarin e sua esposa, Valentina Ivanovna. “Ele ficou com medo que achassem que ele tava colocando em homenagem ao russo comunista e tal, isso ele contava. E uma vez também o tio João desenhou no caderno, porque o lema era Brasil o País do Futuro, O País Que Vai Para Frente, alguma coisa assim, e aí ele desenhou no caderno um caranguejo e escreveu Brasil Um País Que Vai Para Frente (risos), e ele ficou bravo: apaga isso, apaga isso, e ele ficou com medo entendeu? Ele tinha medo, mas eu não entendia muito bem, porque ninguém contava para gente como era, algumas coisas meu pai deixava escapar, mas eu não tinha muita noção do que era. Quando eu entrei na faculdade e aí sim veio as Diretas Já, aí que eu comecei a prestar atenção, que a gente não tinha direito ao voto, que era tudo indireto, aí veio a anistia. Eu lembro que quebrei a perna e escrevi no gesso: Diretas Já. Aí que começou a cair minha ficha porque até então não sabia, pra mim a vida era aquilo, era normal, a gente não ficava sabendo das coisas.”

Uma vez, ela me diz, uma professora mandou os alunos pintarem o mapa do Brasil, e um menino pintou o mapa de vermelho, ela ficou muito brava: “Jamais você faça isso, nunca mais você faça isso!”. Já a professora de inglês, quando entrava todos tinham que se levantar como soldados, na época usavam avental. E ela gritava: Good afternoon! E todos respondiam: Good afternoon! Depois olhava todo mundo e dizia: Tá sujo, tá não sei o que, blá blá blá. E dava altas broncas. Era a professora mais militar que tinha. E tinha a professora de Ed. Física, que fazia com os alunos o que chamam de ordem unida, que é coluna, cobrir, esquerda volver, direita volver, marchar. Segundo minha mãe ela era legal, mas tinha que estar com a roupa limpinha. “Tinha uma diretora que era uma mãe, a Dona Isbella, que era maravilhosa, morro de saudade dela, ela era muito humana, muito bacana, se tinha alguma coisa assim ela não deixava perceber. Era legal, eu gostava da escola, sempre gostei da escola. Agora, é o que te falo, a gente criança até a adolescência não sentiu muito porque não viveu nada dentro de casa, talvez se tivesse alguém na familia que fosse perseguido, aí eu ficaria mais traumatizada, mas como não teve nada disso a gente não percebeu, né. Só vai saber depois quando começa a estudar e tal, e assim, nós éramos muito pobres, e tinha muita dificuldade, não era um período muito fácil não.

Segundo meu tio, foi devido ao golpe de 64 que meus avós se mudaram para a Baixada, já que meu avô, por seu histórico de grevista e militante comunista, não conseguia emprego em SP. Então a ditadura foi a responsável por eu ter crescido na Praia Grande. “que era um “fim de mundo”, como vivia repetindo a avó Thereza, um lugar cercado de mato, mosquitos, ratos, baratas, morcegos, aranhas e cobras por todos os lados, sem exagero, mas único lugar que o dinheiro deles podia pagar.” Como minha mãe, meu tio nasceu na ditadura, e não tinha como comparar com outros regimes, com o tempo foi compreendendo aos poucos e se colocando em oposição a ela. “De maneira que quando tomei consciência do que era a ditadura ela já estava acabando e eu fiz parte do grande movimento que ajudou a derrubá-la de vez, movimento de esperança que deu muitos frutos e que teve seu auge nos governos Lula, do qual acabei participando. Pra mim, está sendo muito mais difícil viver os dias atuais do que sob a ditadura decadente dos anos 80.” Conclui meu tio, que mais tarde veio a me dar parte da sua coleção de quadrinhos quando eu era menor, entre eles várias Chiclete com Banana, Circo, Piratas do Tietê, Animal, fruto da minha obsessão, e em parte um dos motivos por eu fazer quadrinhos hoje.

--

--